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Consulta 6J/2019 – Procter & Gamble vs. GSK Consumer Healthcare

EXTRACTO DE ACTA

No quinto dia do mês de dezembro do ano de dois mil e dezanove, reuniu a Segunda Secção do Júri de Ética da Auto Regulação Publicitária, que apreciou o processo nº 6J/2019 tendo deliberado o seguinte.

Processo n.º 6J/2019

  1. Objecto dos Autos

1.1. A PROCTER & GAMBLE PORTUGAL, PRODUTOS DE CONSUMO, HIGIENE E SAÚDE, S.A. (adiante indiscriminada e abreviadamente designada por P&G ou Requerente) veio, junto do Júri de Ética da ARP (adiante indiscriminada e abreviadamente designado por Júri ou JE), apresentar queixa contra a GLAXOSMITHKLINE CONSUMER HEALTHCARE PRODUTOS PARA A SAÚDE E HIGIENE, LDA. (adiante indiscriminada e abreviadamente designada por GSK CH ou Requerida), relativamente a comunicação comercial ao seu medicamento “Voltaren Emulgelex” – promovida pela última em suporte televisão – tal, por alegada violação do quadro ético-legal em matéria de publicidade testemunhal e de princípio da veracidade, bem como das normas  que constam do Título VIII do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto (adiante designado por Estatuto do Medicamento), que transpôs para a ordem jurídica portuguesa, inter alia, o Título VIII da Diretiva n.º 2001/83/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano.

1.2. Notificada para o efeito, a GSK CH apresentou a sua contestação.

Dão-se por reproduzidos a queixa, a contestação e os documentos juntos pelas Partes.

1.3. Questão prévia

Esclarece a GSK CH, na sua contestação, que “…convicta da legalidade, técnica e regulamentar, das peças publicitárias e tendo sido interpelada pela PROCTER & GAMBLE, a qual alegou desconformidade legal do conteúdo dos claims constantes das peças publicitárias, a GSK CH nos termos e para os efeitos do artigo 164.º do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, Estatuto do Medicamento, requereu ao INFARMED, no âmbito das suas competências de monitorização e avaliação da publicidade de medicamentos, a apreciação das supra citadas peças publicitárias, por forma a avaliar da sua conformidade regulamentar, nomeadamente em matéria de integral cumprimento da legislação publicitária em vigor no território nacional”. (sic. ponto 5).

Acrescenta a Requerida que “…confrontada com o teor da queixa da PROCTER & GAMBLE junto da Auto Regulação Publicitária obviamente que reconhece competência e capacidade a este instituto para idêntica avaliação e, consciente da razão que lhe assiste, não se frusta, de forma nenhuma, a contestar especificadamente cada um dos pontos da referida queixa, nem se escuda numa pretensa competência exclusiva do INFARMED para esse efeito, sem prejuízo de razoavelmente considerar que a Auto Regulação Publicitária deve ter em consideração o parecer que o INFARMED venha a emitir nesta matéria”. (sic. ponto 7, negrito, sublinhado e referência de rodapé do Júri).

Entende o JE não precisar de ter em consideração qualquer parecer que o INFARMED venha a emitir, porquanto a sua competência material e a da ARP são distintas e passíveis de se não intercetarem. Aliás, sempre de verificaria uma óbvia impossibilidade prática. O Júri não pode ter em conta algo que ainda não existe.

Com efeito, está-se aqui perante auto-regulação em sede de comunicações comerciais sistema no qual assenta a disposição do artigo 30.º do Código de Conduta da ARP, segundo a qual “Os sócios (…) e os membros associados das Associações e outras congéneres filiadas no Instituto, bem como quaisquer Entidades, incluindo não membros, que submetam questões à apreciação do JE – Júri de Ética, são obrigados a acatar prontamente, na letra e no espírito, as decisões oriundas, nomeadamente, dos órgãos sociais da ARP e do JE”.

Ora, quer a P&G quer a GSK CH, são associadas da ARP, tendo-se vinculado a cumprir o Código de Conduta em matéria de Publicidade e de Outras formas de Comunicação Comercial, cuja eventual inobservância, por parte da Requerida, cumpre ao JE decidir nos termos do artigo 13.º do seu Regulamento. Logo, sem prejuízo do disposto nos artigos 4.º, n.º 1 e 5.º do Código referido.

Por maioria de razão, entende o Júri não dever deter-se na apreciação de uma eventual desconformidade entre a comunicação comercial em lide e o Código Deontológico da APIFARMA contrariando, assim, a pretensão da P&G constante de artigos 13.º a 17.º da queixa.

1.4. Dos factos

Através da análise da globalidade do articulado da petição e dos documentos juntos ao processo com a mesma, conclui o JE que a denúncia da P&G se reporta a comunicação comercial da responsabilidade da GSK CH ao seu medicamento “Voltaren Emulgelex” – promovida pela última em suporte televisão -, sendo colocada em crise a alegação publicitária “bom perfil de segurança”. (Cfr. art.ºs 4.º a 14.º da queixa e Documento n.º 3 junto).

 1.5. Das alegações das Partes

1.5.1. Em síntese, sustenta a P&G em sede de petição, que:

– (i) “A utilização da expressão “bom perfil de segurança” constitui violação da proibição contra a garantia de que o medicamento não provoca reações adversas ou efeitos secundários (…), em conjugação com a obrigação de correspondência entre os conteúdos do anúncio e o resumo das características do medicamento (RCM)” (sic. art.º 7.º) acrescentando que, “A alegação de que o medicamento apresenta um “bom perfil de segurança” – ao sugerir que este é um medicamento que não provoca reações adversas ou efeitos secundários, não obstante terem sido detetadas reações fatais à utilização de anti-inflamatórios não esteroides como o Voltaren Emulgelex – não se encontra em cumprimento do estabelecido no artigo 153.º, n.º 4, alínea b) do Estatuto do Medicamento” (sic. art.º 11.º)

– (ii) O “anúncio em análise decorre num ambiente em tudo semelhante a uma farmácia e que, nesse contexto, as palavras proferidas pelo ator acerca das propriedades do medicamento Voltaren Emulgelex são suscetíveis de associação, por parte do consumidor médio, a um profissional de saúde, traduzindo-se, assim, numa violação da proibição constante do artigo 153.º, n.º 4, alínea f) do Estatuto do Medicamento.” (sic. art.º 17.º).

1.4.2. Contraditando a denúncia da P&G, vem a GSK CH defender na sua contestação, e em resumo, que:

– (i) “…a afirmação “bom perfil de segurança” não significa “…a inexistência de reações adversas ou efeitos secundários” (sic. ponto 10), “…a expressão é utilizada num contexto específico em que se pergunta: “No seu dia a dia já toma muitos comprimidos? Sabia que existe uma forma eficaz e com bom perfil de segurança?”, pelo que o seu uso apenas visa informar o utente de que Voltaren Emulgelex é uma alternativa no mercado, dotado de um perfil de segurança digno de atenção, devido à sua baixa absorção sistémica comparativamente a anti-inflamatórios sistémicos (AINEs), quando para a mesma condição/patologia podem ser utilizados AINEs sistémicos comprimidos/cápsulas) ou AINEs tópicos” (sic. ponto 11) acrescento que, “Ademais, o próprio folheto informativo do medicamento dispõe de toda a informação necessária para uma utilização segura do medicamento, pese embora, reconheçamos que o aconselhamento do farmacêutico ou técnico de farmácia será o fator decisivo para uma informação elucidativa ao utente/consumidor e a tomada de uma decisão consciente de aquisição” (sic. ponto 14) e que, “à luz do vertido no Estatuto do Medicamento, apenas se pode legitimamente concluir que a publicidade a medicamentos não pode ser contrária, ou ir em sentido divergente, face a elementos do RCM aprovado pelo INFARMED. É este o sentido e alcance corretos e razoáveis da interpretação da alínea c) do Artigo n.º 155 do Estatuto do Medicamento.” (sic. ponto 22);

– (ii) “…o anúncio “sub judice” não identifica de modo algum qualquer profissional de saúde ou pessoa que pela sua celebridade possa incitar ao consumo do medicamento, mas tão só apresenta uma explicação, prestada por um ator, elencando as características e propriedades do medicamento, o que não será, de todo, ilegal ou contrário à lei.” (sic. ponto 37).

  1. Enquadramento ético-legal

2.1. Da alegada prática de publicidade enganosa

2.1.1. Da expressão “bom perfil de segurança”

O Júri não segue o entendimento da Requerente quanto à aplicação restritiva do artigo 150.º, n.º 3, alínea a) do Estatuto do Medicamento. Na verdade, defende o JE que a publicidade a medicamentos deverá estar conforme com o conteúdo do RCM  mas, ao contrário da P&G entende, também, que tal conformidade não terá que ser literal,  isto é, que apenas será exigível a concordância da comunicação comercial com o dito RCM e não, a literalidade, identidade e correspondência absoluta entre o mesmo e alegações publicitárias, à semelhança do que refere a GSK CH.  Com efeito, uma comunicação comercial abarca inúmeros elementos verbais e, ou, imagéticos, muitos dos quais só constariam de um resumo de medicamento, por absurdo. De facto, concorda o JE com a Requerida quanto ao alegado na sua contestação no sentido de que, “a publicidade de medicamentos deve conter elementos que estejam de acordo com as informações constantes do resumo das características do medicamento” (sic. ponto 20), “Não resultando, de modo algum, que só deve conter elementos constantes do RCM (…) conforme decorre de uma interpretação sistemática do Estatuto do Medicamento.” (sic. ponto 22, negrito e sublinhado do Júri).

Já no que tange à denúncia da P&G no sentido de que, “Ainda que a terminologia “bom perfil de segurança” possa ser facilmente interpretada por um profissional de saúde, o público consumidor, generalizadamente desprovido de formação médico-científica, terá dificuldade em interpretar e compreender com rigor o seu significado, podendo assumir simplesmente que não há possibilidade de ocorrência de reações adversas…” (sic. art.º 12.º da queixa), entende o JE dever subscrevê-la. De facto, defende o Júri que o destinatário da publicidade, colocado perante o claim em lide, poderá “assumir” que “não há possibilidade de ocorrência de reações adversas” graves e, ou, até entender que a leitura da “bula” ou o aconselhamento com farmacêutico ou outro profissional especializado não são necessários.

Na realidade, está-se em presença de um medicamento cuja aquisição não se encontra sujeita a receita médica, circunstância que contribui, não raras vezes, para a convicção de total segurança e isenção de riscos, o que não corresponde à verdade.

Em conformidade, o Júri entende que a expressão colocada em crise, porquanto de natureza subjetiva, carece de contexto factual. Dito de outra forma, admitindo que não é, per se, desconforme com o RCM  –  já que as reações adversas do uso do medicamento se reputam como “muito raras” (cfr, documentos 3 da queixa e da contestação) – o certo é que estando em causa o bem jurídico saúde, as mesmas deveriam ser objeto de informação através de disclaimer que não só acautelasse o conhecimento de efeitos muito raros (mas graves) como, e sobretudo, garantisse a necessidade de consulta da “bula” e, ou, aconselhamento com o farmacêutico, designadamente, no que concerne a segurança quanto a faixas etárias, contraindicações, gravidez e precauções especiais de utilização do medicamento, entre outras cautelas. (Cfr. Doc. 3 da queixa).

Tal, sob pena de o destinatário da comunicação comercial[1] poder não percepcionar a referida necessidade de obtenção de informação prévia. De onde considera o JE que a expressão colocada em crise carece de objetivação ao nível da respectiva publicidade, através de contextualização associada sendo, assim, suscetível de induzir em erro os seus destinatários quanto a possíveis efeitos do medicamento na sua saúde, o que se encontra desconforme com o disposto nos artigos 4.º e 9.º, n.ºs 1 e 2, alínea h) do Código de Conduta da ARP.

2.1.2. Da alegada prática de publicidade testemunhal ilícita

Defende a P&G em sede de contestação que “…o anúncio em análise decorre num ambiente em tudo semelhante a uma farmácia e que, nesse contexto, as palavras proferidas pelo actor acerca das propriedades do medicamento Voltaren Emulgelex são susceptíveis de associação, por parte do consumidor médio, a um profissional de saúde, traduzindo-se, assim, numa violação da proibição constante do artigo 153.º, n.º 4, alínea f) do Estatuto do Medicamento.” (sic. art.º 17.º).

Contraditando a argumentação da Requerente, vem a GSK CH defender que o “… ator em causa não tem qualquer sinal distintivo de profissional de saúde (não usa bata, nem crachá, ou qualquer outro distintivo) e está do lado de fora do balcão, o que afasta, sem margem para dúvidas, a sua associação a um profissional de saúde e o eventual incitamento ao consumo daquele medicamento em detrimento de outros, por essa razão ou outras, como indevidamente pretende a PROCTER & GAMBLE.” (sic. ponto 36).

Entende o Júri não assistir razão à Requerida, neste tocante.

Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 15.º do Código da Publicidade, sob a epígrafe “Publicidade testemunhal” (o qual encontra correspondência no artigo 17.º do Código de Conduta da ARP) em cujo n.º 1 se dispõe que a comunicação comercial “…não deve reproduzir ou citar qualquer testemunho, recomendação qualificada (…) que não seja genuíno…”, entende o Júri que o depoimento contido na comunicação comercial da responsabilidade da Requerida:

– (i) Teria que ser personalizado, genuíno, comprovável e ligado à experiência do depoente, uma vez que o mesmo possui um conteúdo especializado, em tudo confundível com o que seria feito por um farmacêutico .Tal, em conformidade, aliás, com o que a própria Requerida entende dever ser a realidade no acto de aquisição, já que refere a  ponto 13 da contestação que “…atenta a sua qualidade de medicamento não sujeito a receita médica, a sua dispensa é obrigatoriamente realizada por um profissional qualificado – farmacêutico ou técnico de farmácia – em farmácia/para-farmácia, conforme os termos do artigo 2º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei 134/2005, de 16 de Agosto e artigo 8º nº1 da Portaria 827/2005, de 14 de Setembro” (sic);

– (ii) Em coerência, não poderia ser proferido por um ator mas sim, por um profissional qualificado e identificado como tal, fosse qual fosse a indumentária ou a posição ocupada dentro de um espaço percecionado como farmácia ou para-farmácia, atento o cenário e, designadamente, os expositores das embalagens do medicamento em apreço (cfr. Documento 2 da queixa), bem como o facto público e notório de a marca não ser vendida em estabelecimentos diversos. Isto, também, considerando que o elenco de situações de “atribuição de especialização” feita no artigo 15.º do Código da Publicidade é, meramente, exemplificativa.

De onde se verifica uma prática de publicidade testemunhal ilícita, por desconformidade com o quadro ético-legal que ficou referido e, por maioria de razão, com o princípio da veracidade em matéria de comunicações comerciais constante dos artigos 4.º e 9.º, n.ºs 1 e 2 do Código da Conduta da ARP configurando, deste modo e concomitantemente, um caso de publicidade enganosa, atento o “tratamento auditivo (…) suscetível de induzir, em erro o consumidor.” (Cfr. artigo 17.º do mesmo Código).

  1. Decisão

Termos em que a Segunda Secção do Júri de Ética da ARP delibera no sentido de que a comunicação comercial da responsabilidade da GSK CH veiculada um suporte televisão – em apreciação no presente processo -, se encontra desconforme  com os artigos 4.º, n.ºs 1 e 2, 5.º, 9.º, n.ºs 1 e 2, alínea h) e 17.º do Código de Conduta da ARP, bem como com o artigo 15.º do Código da Publicidade, pelo que a sua divulgação deverá cessar de imediato e não deverá ser reposta – quer na sua totalidade, quer em termos parciais, seja em que suporte for – caso se mantenham os tipos de ilícito apurados pelo JE.».

A Segunda Secção do Júri de Ética da Auto Regulação Publicitária

[1] Entendido de acordo com o critério do consumidor médio, razoavelmente atento, esclarecido e informado, sobejamente adotado pela jurisprudência do JE e acolhido no artigo 3.º do Código de Conduta da ARP

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