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Consulta 4J/2020 – APCAP vs. RENAULT PORTUGAL

EXTRACTO DE ACTA

No vigésimo dia do mês de Fevereiro do ano de dois mil e vinte, reuniu a Segunda Secção do Júri de Ética da Auto Regulação Publicitária, que apreciou o processo nº 4J/2020 tendo deliberado o seguinte.

Processo n.º 4J/2020

  1. Objecto dos Autos

A APCAP – Associação Portuguesa das Sociedades Concessionárias das Autoestradas e Pontes com Portagens (adiante indiscriminada e abreviadamente designada por APCAP ou Requerente) veio, junto do Júri de Ética da ARP  (adiante indiscriminada e abreviadamente designado por Júri ou JE), apresentar queixa contra a RENAULT PORTUGAL, S.A. (adiante indiscriminada e abreviadamente designada por Renault Portugal ou Requerida), relativamente a campanha publicitária sob o sloganCLASSE ZERO BY RENAULT” – promovida pela última nos suportes Internet e imprensa escrita – tal, por alegada violação do quadro ético-legal em matéria de princípio da veracidade, concretamente, dos artigos 4.º, 7.º e 9.º do Código de Conduta da ARP e 10.º e 11.º do Código da Publicidade, com a redação introduzida pelo  Decreto-lei n.º 57/2008, de 26 de março.

  • Notificada para o efeito, a Renault Portugal apresentou a sua contestação.

Dão-se por reproduzidos a queixa e os documentos juntos, bem como a contestação a que a Renault Portugal juntou dez documentos.

1.2. Questão prévia

Nos termos do n.º 2 do artigo 10.º do Regulamento do JE, a “…queixa (…) deve ser acompanhada de toda a documentação referente aos factos alegados, sendo obrigatório juntar a comunicação comercial, cuja apreciação se pretende ver analisada, devidamente isolada, sem outra comunicação comercial e/ou conteúdo editorial, num suporte que, a reproduza, com fidelidade, tal como foi veiculada”, condição que a Requerente não observou totalmente, na medida em que não juntou aos autos a referente ao spot publicitário intitulado “Manifesto EcoPlan” inserido no âmbito da campanha da Renault Portugal. Com efeito, neste tocante, a Requerente limita-se a remeter a prova dos factos alegados para um endereço de site da internet. (Crf. ponto 9 da petição).

De onde, a análise do JE não abrangerá o referido spot publicitário.

Esta é, aliás, uma prática sobre a qual o Júri teve já a oportunidade de se pronunciar, designadamente, no âmbito dos Processos 8J/2009,17J/2009, 2J/2010 e 10J/2016 do ICAP.

1.3. Dos factos

Através da análise da globalidade do articulado da petição, bem como do CD ROM e documento n.º 1 juntos ao processo com a mesma, conclui o JE que a denúncia da  APCAP se reporta a comunicação comercial da responsabilidade da Renault Portugal sob o sloganCLASSE ZERO BY RENAULT” – promovida pela última nos suportes Internet e imprensa escrita -, sendo objeto de denúncia as seguintes alegações publicitárias associadas ao disclaimer em caracteres reduzidos “oferta de via verde pré-carregada com o valor de € 185,00+IVA (equivalente a um ano de utilização de veículo elétrico, calculado com base numa média de € 10.000 kms/ano e com 25% desses kms em autoestrada), apenas para clientes particulares na compra de um Renault Zoe, novo, na rede Renault em Portugal e matriculado entre 01.01.2020 e 31.12.2020”.:

1.3.1. Spot publicitário em Internet

– (i) Em caracteres de muito grande dimensão: “CLASSE ZERO: se polui zero, paga zero”;

– (ii) Em voz off: “Portagens. Todos os veículos pagam. Mas os elétricos não poluem, por isso merecem ter uma vantagem. Classe zero: se polui zero, paga zero. Uma iniciativa Renault para uma mobilidade mais sustentável”.

1.3.2. Imprensa escrita

– (i) Em caracteres de elevada dimensão: “CLASSE ZERO”:

– (ii) Em caracteres de menor dimensão: “Se polui zero, paga zero”;

1.4. Das alegações das Partes

1.4.1. Em síntese, sustenta a APCAP em sede de petição, que:

– (i) “…o anúncio publicitário e o spot de vídeo em causa afetam os interesses legítimos das concessionárias de autoestradas e pontes com portagem representadas pela APCAP, aqui Requerente, como os dos utilizadores das autoestradas em geral, isto na medida em que (i) não respeitam o princípio da veracidade e (ii) constituem também publicidade enganosa capaz de criar, nestes últimos, a convicção de que existe, de facto, uma Classe Zero, e consequentemente, que a aquisição de um veículo elétrico, os isentará de pagar portagens” (sic. ponto 11) acrescentando que, “…atendendo a que a lei não prevê essa tal classe (deveria passar) a resultar perfeitamente identificável do referido anúncio que o veículo em causa (o Zoe), paga portagens nas autoestradas e pontes portuguesas” (sic. ponto 14) e, “… ainda, que «seja devidamente esclarecido em formato bem visível e de forma clara em todas as iniciativas que integram a campanha em causa que (i) os automóveis elétricos não estão isentos de portagem, nem a maior ou menor poluição dos veículos está associada ao valor da portagem; (ii) a Renault é que oferece €185,00+IVA nos veículos relevantes; e (iii) o valor de portagens oferecido na referida campanha é e será suportado pela Renault Portugal, não correspondendo efetivamente a uma isenção de pagamento de portagem»”(sic. ponto 15);

– (ii) “…ainda que o referido anúncio publicitário contenha, seja (agora) em vídeo, seja no formato papel, um disclaimer para o facto de a campanha com a mensagem “Classe Zero – se polui zero, paga zero”, ser uma iniciativa Renault, limitada aos veículos Zoe da marca Renault, é inegável que o mesmo passa, antes de mais, uma mensagem (ou mais do que uma, na realidade) que não corresponde à verdade” (sic. ponto 18), “i.e., a mensagem de que os veículos elétricos não poluem” (sic. ponto 19) e “…bem assim, a mensagem de que por não poluírem, os seus proprietários ou usufrutuários, merecem ter uma vantagem consubstanciada na não obrigatoriedade de pagar portagens nas autoestradas e pontes portajadas de Portugal” (sic. ponto 20), sendo que “…não é verdade que os veículos elétricos não poluem (o seu oposto é aliás um facto público e notório)” (sic. ponto 21), “Como não é verdade que pelo facto de não poluírem (ou em bom rigor, poluírem menos), exista qualquer vantagem ou direito a tratamento diferenciado na utilização das autoestradas e pontes portajadas de Portugal” (sic. ponto 22);

– (iii) “…para além do referido anúncio conter mensagens que não refletem a realidade e não são por isso, verdadeiras, é manifesto que pelo modo como o anúncio publicitário foi gizado, mostra-se pelo menos apto a criar a convicção nos seus destinatários de que, ao adquirirem um veículo elétrico (seja ele qual for), “caem” na tal Classe Zero, estando por isso isentos do pagamento de portagens” sic. ponto 27).

1.4.2. Contraditando a denúncia da APCAP, vem a Renault Portugal defender na sua contestação, e em resumo, que:

– (i) “…se tivermos em conta o que é referido no preambulo do DL 57/2008 de 26 de Março e no artigo 5º n.º 1 do mesmo DL que: “O Carácter leal ou desleal da prática comercial é aferido utilizando-se como referência o consumidor médio”, podemos logo dizer que um consumidor médio, perceberia, desde logo, que o conteúdo do anúncio é uma Iniciativa da Renault. Mas mais” (sic. art.º 8.º) “Na carta que junta (…) a APCAP demonstra que entendeu bem o anúncio da Renault, isto porque refere logo no primeiro parágrafo que: “A APCAP – Associação Portuguesa das Sociedades Concessionárias de Autoestradas e Pontes com Portagens, foi surpreendida com um anúncio publicitário com a mensagem “Classe ZERO – Se polui zero, paga zero” a propósito de uma campanha em que a Renault oferece um identificador com pré-carregamento de portagem de 185 euros + IVA na compra de um veiculo elétrico modelo Zoe.” (sic. art.º 9.º), acrescentando que “Resulta assim, claramente, que a mensagem de que a campanha publicitária classe 0 é uma iniciativa da Renault e que esta oferece um identificador com um pré-carregamento de 185 euros mais IVA na compra de um veículo Renault Zoe é bem compreensível por qualquer pessoa ou entidade.” (sic. art.º 10.º);

– (ii) “Desde que o anúncio publicitário foi para o ar, no formato vídeo, que a frase legal (…) passa em rodapé no anúncio, (o que é facilmente demonstrável, isto é, de fácil prova)” (sic. art.º 12.º), acrescentando que “A Primeira foto corresponde ao saco do jornal “Expresso”, que tem as medidas de 35,5 cms altura e 44,8cms (de) comprimento. Se aplicarmos essas medidas à foto junta pela APCP no documento, claramente percebemos que a frase do disclaimer legal onde se refere que é uma iniciativa Renault e onde se refere que esta oferece um identificador com um pré carregamento de 185 euros mais IVA na compra de um veiculo Renault Zoe, é mais do que visível” (sic. art.º 14.º) e que “As restantes fotos, fazem parte de um todo (…) onde o disclaimer/frase legal é perfeitamente visível e legível por qualquer pessoa” (art.º 15.º), havendo “…que referir que nesse vídeo aparece escrita uma frase que é omitida pela Queixosa e que é a seguinte: “«Saiba tudo sobre as nossas iniciativas em Renault.pt»” (sic. artigo 16.º);

– (iii) “É facto publico e notório que os proprietários de veículos eléctricos têm vantagens em relação aos demais, veja-se a titulo de exemplo os apoios dados pelo Governo a quem adquire veículos eléctricos; a nova lei do CO2 e a nova contagem de emissão de partículas – o WLTP,  o dístico verde criado pela Emel, (…) e ainda a Zona de emissões reduzidas Avenida-Baixa-Chiado denominada ZER onde se prevê que na baixa Chiado apenas circulem e determinado horário moradores, comerciantes, cuidadores, detentores de estacionamento e garagens, veículos eléctricos e motociclos, curioso é que este zona se denominará  (…) já que não nos parece que grande parte das entidades nacionais, europeias e até mundiais estejam enganadas quanto aos veículos eléctricos.” (sic. art.º 27.º);

– (iv) “…o anuncio publicitário não poderia ser “gizado” para criar a convicção de que qualquer veiculo elétrico “cairia” – para usar o termo da APCAP – na “tal Classe Zero”, até porque isso seria contraproducente para a mensagem que a Renault quer passar, que é a de que esta oferece um identificador pré carregado com um valor de 185 euros mais IVA na compra de um RENAULT ZOE, sendo que para além das razões legais que já o obrigavam, esta também é uma razão porque está bem explicito que está é uma iniciativa/campanha da Renault e em que é que esta se traduz.” (sic. art.º 32.º).

  1. Enquadramento ético-legal
  • Dos conceitos de hipérbole publicitária e de destinatário

O defendido a art.ºs 36.º a 44.º da contestação acerca dos conceitos de consumidor-médio e de hipérboles publicitárias merece, por parte do Júri, alguns considerandos.

Sustenta a Renault Portugal que, “Não obstante, a prática comercial desleal a que a APCAP se refere no artigo 34º da sua queixa e previsto no DL 57/2008 de 26 de Março, afere-se utilizando-se como referência o consumidor médio, e para um consumidor médio  é facilmente perceptível que se trata de um anuncio publicitário e que esta é uma iniciativa/campanha da Renault e em que é que esta se traduz. (sic. art.º 41.º) acrescentando que “a Lei Portuguesa não define o que é um consumidor médio, no entanto existe uma directiva europeia e alguma doutrina portuguesa que refere que o consumidor médio é aquele que normalmente informado e razoavelmente atento e advertido, tendo em conta factores de ordem social, cultural e linguística, sendo que, com certeza, um proprietário de uma viatura eléctrica será considerado consumidor médio.” (sic. art.º 43.º).

Em primeiro lugar compete ao Júri lembrar que, sem considerar despiciendo o disposto nos artigos 4.º, n.º 1 e 5.º do Código de Conduta da ARP (muito antes pelo contrário) está-se aqui, em primeira linha, na presença de auto-regulação publicitária.

Assim, convém atender ao facto de no artigo 3.º do mesmo Código de Conduta se fazer uma aproximação ao conceito de consumidor médio. Com efeito, nos termos daquele, as comunicações comerciais devem ser avaliadas “…tendo em consideração os conhecimentos, a experiência e a capacidade de discernimento de um Consumidor médio, ou aquele a quem especialmente se destinam, tendo em conta os factores sociais, culturais e linguísticos” (cfr. n.º 3) e que, quanto ao dito “…presume-se que possua um grau razoável de experiência, de conhecimento e bom senso, e detenha uma razoável capacidade de observação e prudência.” (Cfr. n.º 5).

Cumpre ao Júri esclarecer que, a noção de consumidor médio configura um critério utilizado para se aferir o grau de perceção e, ou, compreensão de uma comunicação comercial por parte do chamado destinatário da mensagem publicitária, conceito muito mais lato do que o de consumidor de marcas, bens, produtos ou serviços em sentido estrito. Tal, em consonância com o Código da Publicidade[1], para cuja aplicação se consagra no respetivo artigo 5.º, n.º 1, alínea d) que  “destinatário” é a “…a pessoa singular ou colectiva a quem a mensagem publicitária se dirige ou que por ela, de qualquer forma, seja atingida”. (Negrito e sublinhado do Júri)

De onde, entre outros motivos, não consegue vislumbrar o JE a razão da assertividade da Renault Portugal vertida na alegação de que “…com certeza um proprietário de uma viatura eléctrica será considerado consumidor médio.”, “tendo em conta fatores de ordem social, cultural ou linguística”.  (Cfr. art.º 43.º da contestação).

Mais, as comunicações comerciais geram atenção sobre uma marca, bem, produto ou serviço e constroem notoriedade, identidade e reputação organizacional junto de todos os stakeholders. Não, apenas, perante consumidores ou usuários concretos e determinados, entendimento que não pode ser afastado ou reduzido no que tange a qualquer análise que incida sobre a eventual desconformidade com o princípio da veracidade em matéria de publicidade, e designadamente, no que sobre a matéria se consigna no Código de Conduta da ARP.

Ora, nos termos do n.º 1 do artigo 4.º do mesmo, sob a epígrafe “Princípios Fundamentais”, “Toda a Comunicação Comercial deve ser legal, decente, honesta e verdadeira”. sendo que, segundo o respetivo artigo 5.º, sob a epígrafe “Legalidade”, a mesma comunicação “deve respeitar os valores, direitos e princípios reconhecidos na Constituição e na restante legislação aplicável” e que, de acordo com o artigo 9.º, sob a epígrafe “Veracidade”, “A Comunicação Comercial deve ser verdadeira e não enganosa” (1) e “deve proscrever qualquer declaração, alegação ou tratamento auditivo ou visual que seja de natureza a, directa ou indirectamente, mediante omissões, ambiguidades ou exageros, induzir, ou ser susceptível de induzir, em erro o Consumidor…” (Negrito e sublinhado do JE).

Dito isto, cumpre ao Júri posicionar-se no que concerne ao entendimento da Renault Portugal sobre hipérboles publicitárias não desconformes com o quadro ético-legal em matéria de princípio da veracidade e, bem assim, de práticas de publicidade enganosa previstas no Decreto-lei 57/2008, de 26 de março, cuja redação revogou parcialmente o artigo 11.º do Código da Publicidade.

Após elencar as várias categorias das referidas práticas nesse Decreto-lei previstas, cita-o a Requerida na parte em que consigna que o mesmo “…não visa proibir práticas publicitárias que consistam no uso de afirmações claramente exageradas ou afirmações não destinadas a ser interpretadas literalmente.” (sic. art.º 44 da contestação).

Ao que o Júri acrescenta que, nenhuma disposição do Código de Conduta da ARP contraria tal dispositivo legal. Isto, aliás, de acordo com o conhecido entendimento da melhor doutrina-jus-publicitária no sentido de que nem todas as alegações publicitárias inverídicas são passíveis de serem enganosas e de que nem todas as verdadeiras são insuscetíveis de induzir o destinatário em erro.

Contudo, pelo menos dois requisitos cumulativos têm que estar presentes na publicidade, para que se possa legitimar o “uso de afirmações claramente exageradas ou afirmações não destinadas a ser interpretadas literalmente.”:

– (i) Que as ditas não façam parte do universo da chamada informação essencial a prestar ao consumidor, ou que com esta colidam, onde se incluem, designadamente, os preços ou autorizações de serviços do que fazem eco, por exemplo, sem excluir, e respetivamente, as interdições expressamente previstas nas alínea z) e d) do artigo 8.º do Decreto-lei que a Renault Portugal cita, sob a epígrafe “Ações enganosas em qualquer circunstância”. Dito de outra forma, ações enganosas independentemente – entre outros fatores – da perceção do destinatário acerca do significado das respetivas mensagens;

– (ii) Que a hipérbole publicitária (caso seja admissível de acordo com o que se acabou de referir), se possa considerar de tal forma afastada da “realidade possível” e, ou, próxima, que constitua um absurdo o respetivo destinatário – entendido de acordo com a aceção já sobejamente referida – vir a percecioná-la como verdadeira. Daí o legislador ter considerado o “uso de afirmações claramente exageradas ou afirmações não destinadas a ser interpretadas literalmente” como práticas não abrangidas pelo Decreto-lei em apreço.

Ora, no que tange às alegações publicitárias em lide, entende o JE que nenhum dos requisitos elencados expostos se verifica, como se passará a expor.

  • Da alegada prática de publicidade enganosa

De facto, colocado o respetivo destinatário da publicidade em análise perante os claimsCLASSE ZERO: se polui zero, paga zero” e “Portagens. Todos os veículos pagam. Mas os elétricos não poluem, por isso merecem ter uma vantagem. Classe zero: se polui zero, paga zero. Uma iniciativa Renault para uma mobilidade mais sustentável”, o mesmo poderá percecionar a existência de uma “CLASSE ZERO” cuja criação teve por base uma iniciativa da Renault Portugal, perceção essa que é suscetível de não ser anulada por virtude do disclaimer em lagartixa com caracteres comparativamente minúsculos (em vídeo, associado a voz off justaposta com texto diverso, desviando a atenção): “oferta de via verde pré-carregada com o valor de € 185,00+IVA (equivalente a um ano de utilização de veículo elétrico, calculado com base numa média de € 10.000 kms/ano e com 25% desses kms em autoestrada), apenas para clientes particulares na compra de um Renault Zoe, novo, na rede Renault em Portugal e matriculado entre 01.01.2020 e 31.12.2020”.

De facto, quando muito, um consumidor médio, razoavelmente atento, esclarecido e informado perceberá, caso consiga prestar atenção ao disclaimer, que não estará isento e que não pagará´ propriamente € 0”. Porém, os disclaimers, independentemente do destaque, não têm por vocação a de tornar legítimos slogans de campanha, quando os contradigam frontal e totalmente em termos de significado. Dito de outra forma, de acordo com o que o Júri acabou de concluir acerca dos requisitos de admissibilidade de hipérboles, a alegação publicitária “CLASSE ZERO” (ainda que com o “O” fantasiado”) é suscetível de ser entendida pelo destinatário como uma nova classe de veículos isenta de pagamento nas portagens, atenta a “colagem” e, ou, proximidade com a realidade possível e não distante, bem como a conjugação com o claimse polui zero, paga zero”. Tal realidade possível, diga-se, determinada pela existência (aqui, sim) das classes legalmente instituídas para efeitos de aplicação das tarifas de portagem de autoestrada e/ou pontes com portagem. Isto, de par com a ilegitimidade de utilização da expressão.

Na realidade, analisados os principais fatores que, através do claim a que se reporta o JE, perpassam o texto publicitário da totalidade da campanha objeto de denúncia, pode-se concluir que, a utilização de recursos linguístico-argumentativos e icónicos “credíveis” conferem à dita efeitos de sentido capazes de influenciar o destinatário. Tal, já que não estão aqui em causa elementos claramente ficcionais e sem vocação para serem interpretados literalmente, como acontece, por mero exemplo, com os casos dos automóveis que caem de edifícios e “aterram” intactos no solo ou se transformam em robots semelhantes aos dos comic books.

Efetivamente, fabricar uma imagem funcional implica construí-la em conformidade com um reportório conhecido pelo destinatário e segundo as regras de encadeamento normais. É este conhecimento do “código” que permite fazer surgir o significado. Ora, a expressão “CLASSE ZERO” é em tudo semelhante às “restantes classes” legalmente categorizadas, o que traduz um facto público e notório. Por outro lado, o verbal e o icónico têm também os seus espaços próprios, os quais, no caso vertente, interagem na associação entre claims de grande dimensão gráfica e imagens de veículos das “várias classes” passando em portagens, servindo de ilustração de todo um texto publicitário, reforçando-lhe o sentido.

Por outro lado, não quer o Júri deixar de salientar que, nenhum esclarecimento sobre a dita expressão “CLASSE ZERO”, eventualmente destinado a estabelecer um inequívoco significado de fantasia e, ou, de futurismo, se encontra contido nas próprias peças publicitárias em que aquela é utilizada. Mais, é irrelevante que a tentativa se encontre noutras, ao contrário do que parece pretender a Requerida, nomeadamente, a art.º 30.º da contestação. Tal, de acordo com o disposto no artigo 9.º, n.º 1, alínea c)  do Decreto-lei n.º 57/2008, de 26 de ,março, por virtude de, obviamente, não se aplicar in casu, a exceção prevista no respetivo n.º 2, em que se dispõe que “Quando o meio de comunicação utilizado para a prática comercial impuser limitações de espaço ou de tempo, essas limitações e quaisquer medidas tomadas pelo profissional para disponibilizar a informação aos consumidores por outros meios devem ser tomadas em conta para decidir se foi omitida informação”.

Pelo exposto, entende o Júri assistir razão à APCAP quanto ao por esta referido no sentido de que não cabe, nem pode caber, à Renault Portugal a prerrogativa de criar ou alterar os tipos de classe de veículos para efeitos de aplicação das tarifas de portagem de autoestrada e/ou pontes com portagem. (Cfr. ponto 25 da queixa). Tenha ou não tenha alterado, é esta a mensagem passada ao destinatário da comunicação comercial em apreço. Com efeito, a alegação publicitária objeto da questão controvertida, ao se encontrar desconforme com o disposto nos artigos 4.º, n.º 1, 5.º e 9.º, n.º 1 do Código de Conduta da ARP, consubstancia uma prática de publicidade enganosa, atenta a respetiva suscetibilidade de indução do destinatário em erro.

  • Da bondade da prova apresentada pela Renault Portugal

Foi entendido quer pelo legislador português, quer pela União Europeia (cfr. Directivas 84/450/CEE e 97/55/CE) que, como norma de instrução em matéria de observância do princípio da veracidade, se devia instituir uma regra de direito probatório (cfr. actual n.º 3 do artigo 11.º do Código da Publicidade) nos termos da qual se presumem inexactos os dados referidos pelo anunciante na falta de apresentação de provas ou na insuficiência das mesmas, no que, aliás, o articulado dos artigos 4.º, 5.º e 12.º do Código de Conduta da ARP se encontram em consonância, pelo que impede sobre a Renault Portugal, o ónus da prova das alegações publicitárias em lide.

Com efeito, nos termos do referido artigo 12.º, n.º 1, “As descrições, alegações ou ilustrações relativas a factos verificáveis de uma comunicação comercial, devem ser suscetíveis de comprovação”.

Por maioria de razão do que se expôs nos pontos anteriores, a pertinência de prova sobre a matéria que é alvo de denúncia referir-se-á às alegações publicitárias “se polui zero, paga zero” e “Portagens. Todos os veículos pagam. Mas os elétricos não poluem, por isso merecem ter uma vantagem”, de acordo com o denunciado a pontos de 18 a 21 e 27 da queixa.

Ora, analisados os documentos juntos aos autos com a contestação, entende o Júri que a Requerida não logrou comprovar que:

– (i) os veículos elétricos não poluem ou “poluem zero”, sendo que “poluição reduzida” (cfr. docs 9 e 10 da contestação) não significa “poluição zero” e se conclui aqui, também, pela inadmissibilidade de hipérboles publicitárias, atenta a essência da informação contida na mensagem;

– (ii) pelo facto de não poluírem, os seus proprietários ou usufrutuários pagam zero” nas portagens nas autoestradas e pontes portajadas de Portugal, ou seja, estão isentos. Tal, por associação com o significado decorrente da expressão “CLASSE ZERO”, que ficou escalpelizado pelo JE.

 

  1. Decisão

Termos em que a Segunda Secção do Júri de Ética da ARP delibera no sentido de que a comunicação comercial da responsabilidade da Renault Portugal – veiculada nos suportes internet e imprensa escrita – em apreciação no presente processo -, se encontra desconforme  com os artigos 4.º, n.º 1, 5.º., 9.º, n.º 1 e 12.º. n.º 1 do Código de Conduta da ARP, pelo que a sua divulgação deverá cessar de imediato e não deverá ser continuada e, ou, reposta – quer na sua totalidade, quer em termos parciais, seja em que suporte for – caso se mantenham os tipos de ilícito apurados pelo JE.».

A Presidente da Segunda Secção do Júri de Ética da Auto Regulação Publicitária

[1] E, igualmente, de acordo com Acórdão do Tribunal de Justiça proferido no processo C-220/98, de 13 de janeiro de 2000 (Estée Lauder Cosmetics vs. Lancaster Group).

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