12J/2016
Recurso
Fromageries Bel Portugal
vs.
Lactogal
COMISSÃO DE APELO
Proc. n.º 12J/2016
Recorrente:“FROMAGERIES BEL PORTUGAL, SA”
versus:
“LACTOGAL – PRODUTOS ALIMENTARES, SA”
I- RELATÓRIO
A Fromageries Bel Portugal, SA, adiante designada apenas por “Fromageries Bel”, recorre para esta Comissão de Apelo da Deliberação da 2ª Secção do JE proferida em 13 de Setembro de 2016, no âmbito do processo acima referenciado, que deu razão a uma queixa apresentada por Lactogal – Produtos Alimentares, SA, adiante designada apenas por “Lactogal”.
1 – Dinâmica processual
1.1. O processo teve início com uma queixa apresentada pela Lactogal, relativa à comunicação comercial ao seu leite “LEITE DE PASTAGEM TERRA NOSTRA”, promovida pela Fromageries Bel, nos suportes Internet, Imprensa, Televisão, Rádio e Embalagem, por alegada violação dos artigos 4.º, 5.º, 9.º e 15.º do Código de Conduta do ICAP, artigo 10.°do Código da Publicidade, artigo 7.°, n.º 1, alíneas a) e b) do Decreto-lei n.º 57/2008 de 26 de Março, artigo 23.º, n.º 1, alínea a), n.º 2 e n.º 3 do Decreto-lei 560/99, artigo 7.º do Regulamento (UE) nº 1169/2011, artigos 3.º, alínea a), 5º, n.ºs 1 e 2, 10.º, n.ºs 1, 2 e 3 do Regulamento (UE) n.º 1924/2006 e artigo 23.º do Regulamento (CE) 834/2007, bem como dos artigos 317º, alínea. e) e 331º do Código da Propriedade Industrial.
Na denúncia, identifica-se a mensagem publicitária em causa e os diversos suportes onde a mesma é veiculada, alegando-se que tal mensagem publicitária é susceptível de induzir em erro o consumidor médio, por poder criar no público-alvo a convicção de se tratar de leite de origem biológica, quando, afinal, se trata de leite ultrapasteurizado.
Mais se alega que as alegações “Um leite que faz bem”, “mais saudável” e “puro”, sugerindo ter o leite, comercializado pela Fromageries Bel, características especiais e atribuindo-lhe propriedades de prevenção de doenças, configuram alegações de saúde, proibidas pelas regras comunitárias.
Alega-se, também, que as alegações “Primeiro Leite de Pastagem”, “um leite único, puro”, “O Leite de Pastagem é um leite sem igual. Puro”, “O Leite de Pastagem é um exclusivo de produtores do Programa Leite de Vacas Felizes”, “Com a adoção de práticas mais eficientes e sustentáveis”, “Um leite que faz bem”, “mais puro, saudável e saboroso” traduzem publicidade comparativa com outros leites, designadamente os comercializados pela Lactogal, sendo suscetíveis de induzir em erro o consumidor.
Refere-se, ainda, que as alegações usadas pela requerida configuram prática comercial desleal, sob a forma de acção enganosa, por conterem, por um lado, informações falsas, por outro lado, informações que induzem ou são susceptíveis de induzir em erro o consumidor em relação à natureza e às características do produto em causa, criando, ainda, confusão com outros produtos dos concorrentes.
A final, a denunciante requereu que:
a) Sejam as referências a i) “Leite de Pastagem”, (i) “Leite de Pastagem”, (i) “Puro Leite de Pastagem”, (iii) “a terra do puro leite de pastagem”, (iv) “O Primeiro Leite de Pastagem”, (v) “um leite único, puro e rico”, (vi) “O Leite de Pastagem é um leite sem igual. Puro”, (vii) “Com a adoção de práticas mais eficientes e sustentáveis”, (viii) “O programa Leite de Vacas Felizes é sobre ter o melhor leite” e (ix) “O melhor leite vem da pastagem de vacas felizes” (x) “Um leite que faz bem”, (xi) “mais saudável”, (xii) “puro”, (xiii) “O Leite de Pastagem é um exclusivo de produtores do Programa Leite de Vacas Felizes” e (xiv) “mais puro, saudável e saboroso” declaradas ilegais em virtude de violarem o disposto nas als. a) e b) do nº 1 do art. 7º do DL 57/2008, , no art. 23º. nº 1 al. a), nº 2 e nº 3 do DL 560/99, art. 23.º do Regulamento (CE) 834/2007 do Conselho, os. arts. 3º, al. a), 5º, nºs 1 e 2, 10º, nºs 1, 2 e 3 do Regulamento (UE) nº 1924/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, art. 7.º do Regulamento 1169/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, arts. 317º, al. e) e 331º do Código da Propriedade Industrial e nos arts. 9º º e 15º do Código de Conduta do ICAP;
b) Seja, consequentemente, ordenado o expurgo daquelas alegações de todos os meios usados pela BEL PORTUGAL na campanha publicitária com a qual vem promovendo ao seu “Leite de Pastagem”, designadamente do seu sites http://www.terra-nostra.pt/ e na rotulagem da embalagem, bem como ordenada a cessação da exibição dos filmes e spots publicitários em toda e qualquer plataforma de TV, Rádio, Internet bem como a retirada dos cartazes publicitários afixados em múpis.
1.2. A Fromageries Bel contestou, pedindo que a queixa se considere improcedente.
Em abono da sua pretensão, alegou, em síntese, que:
Em Janeiro de 2015, a BEL PORTUGAL lançou o Programa Leite de Vacas Felizes, um programa de cooperação com os produtores de leite açorianos que visa modernizar, melhorar e especializar os produtores em leite de pastagem, assegurando pastagem ao ar livre durante todo o ano, alimentação à base de erva fresca e elevados critérios de qualidade e de bem-estar animal.
As alegações em causa não indicam, nem sugerem, expressa ou implicitamente, qualquer outro produto ou designação comercial diverso daquele que assinala, não sendo, por isso, susceptível de criar qualquer confusão junto do mercado ou dos consumidores.
A alegação “Vacas Felizes” sintetiza de modo criativo e não enganoso as condições e requisitos de bem-estar animal exigidos pelo programa e a menção “é sobre ter o melhor leite” visa igualmente ilustrar de uma maneira criativa, mas não enganosa, o esforço e o investimento na melhoria contínua do Leite de Pastagem Terra Nostra.
As alegações constantes da campanha publicitária não indicam, nem sugerem, expressa ou implicitamente, qualquer comparação, nomeadamente de natureza excludente ou denegridora de outros produtos concorrentes ou dos respectivos produtores, sendo insusceptível de conduzir o consumidor a identificar qualquer concorrente ou produto supostamente visado por esta alegação.
A alegação o Leite de Pastagem Terra Nostra “faz bem” não indica explicita ou implicitamente qualquer efeito terapêutico ou de melhoria da saúde ou de prevenção da saúde, nem como tal é percecionado pelo consumidor. Por outro lado, indicar que o Leite de Pastagem Terra Nostra “faz o bem” é claramente percecionado como constituindo uma alusão verídica, honesta e não enganosa sobre os efeitos compreendidos na implantação do Programa Leite de Vacas Felizes, nomeadamente no que respeita aos requisitos de bem-estar animal, sustentabilidade ambiental, económica e social, que acima foram comprovados.
As alegações “com a adoção de práticas mais eficientes e sustentáveis” e “Mais puro, saudável e saboroso Mais saudável” são meramente informativas das melhorias introduzidas nas práticas da produção do leite Terra Nostra que foram adotadas no Programa Leite de Vacas Felizes, designadamente, em termos de eficiência, sustentabilidade e bem-estar animal.
2. Pronunciando-se sobre a queixa apresentada, veio a 2ª Secção do JE, a deliberar que “a comunicação comercial da responsabilidade da FROMAGERIES BEL – veiculada nos suportes internet (com exceção dos dois vídeos do you tube), imprensa e embalagem – em apreciação no presente processo -, se encontra desconforme com os artigos 4.º, n.ºs 1 e 2, 5.º, 7.º, n.º 1, 9.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 12.º e 15.º, alíneas a) e f) do Código de Conduta do ICAP, artigos 10.º e 11.º do Código da Publicidade, o último, com a redação introduzida pelos artigos 4.º, 6.º e 7.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-lei n.º 57/2008, de 26 de Março, bem como com o artigo 23.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-lei n.º 560/99, pelo que a sua divulgação deverá cessar de imediato e não deverá ser reposta – quer na sua totalidade, quer em termos parciais, seja em que suporte for – caso se mantenham os tipos de ilícito apurados pelo JE.”
3. Desta deliberação, a Fromageries Bel interpôs recurso para esta Comissão de Apelo, juntando com as alegações quatro documentos.
Na sua douta alegação, em conclusão, disse:
a) Do confronto do pedido da Recorrida com o que vem exposto na parte dispositiva da douta decisão recorrida resulta que as alegações publicitárias “sem stress” (2.3.viii), “Leite de pastagem Terra Nostra porque vacas-felizes agradecem com melhor leite” (2.2.iv), “Todo o leite é bom, o Terra Nostra é melhor” (2.2.v), e “O melhor leite precisa de práticas agrícolas sustentáveis e de elevados critérios de qualidade” (2.2.vi), não constam do pedido formulado na queixa da LACTOGAL.
b) Decidindo de igual modo além do pedido formulado na queixa, a douta decisão recorrida determinou ainda que “… a comunicação comercial da responsabilidade da FROMAGERIES BEL (…) em apreciação no presente processo se encontra desconforme com [a legislação aplicável], pelo que a sua divulgação deverá cessar de imediato e não deverá ser reposta – quer na sua totalidade, quer em termos parciais, seja em que suporte for – caso se mantenham os tipos de ilícito apurados pelo JE.”.
c) A condenação ultra petitum é também verificada a p. 28 da douta decisão recorrida, onde se indica sobre a prova documental junta com a contestação: – “os vários casos de publi-reportagem não identificada como tal constantes da campanha em lide (…) constituirão uma prática de publicidade enganosa em qualquer circunstância, por inobservância do disposto no artigo 8.º, alínea n), do Decreto-Lei 57/2008. Será o caso, por exemplo, do conteúdo constante do Doc. 11 da contestação. Por outro lado, ainda, a publicidade efetuada no sítio oficial de internet de uma marca não pode aparentar ser notícia, nem alegar que o é (Cf. doc. 24 da contestação)”.
d) Uma vez que a douta decisão recorrida ordenou o expurgo de alegações que não constam do pedido formulado pela LACTOGAL, condenando a BEL PORTUGAL em objeto diverso do pedido, ocorre nulidade da decisão por excesso de pronúncia e por conhecimento de um pedido diferente do formulado, devendo a douta decisão recorrida ser revogada por força do disposto no n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Sem prescindir,
e) A descrição que é feita no ponto 15 da contestação indica exclusivamente os métodos da produção intensiva e extensiva. A extrapolação feita a p. 16 da douta decisão recorrida de que o leite de pastagem se apresenta como único leite de pastagem por contraposição a todos “os de não pastagem” é, salvo o devido respeito, incorreta.
f) Conforme resulta da comprovação realizada pela Recorrente, o Leite de Pastagem Terra Nostra é aquele que primeiro se apresentou e registou no mercado português como leite de pastagem, não existindo qualquer outro sinal distintivo nacional contendo ou indicando a origem “pastagem” na sua designação comercial. A alegação “primeiro leite de pastagem” não apresenta, nem sugere, qualquer indicação concreta direta ou indireta que seja comparativa com outros produtos concorrentes ou denegridora destes ou dos respectivos produtores. Sem prescindir,
g) Por não ser possível saber a razão ou razões, os factos provados, motivos de ciência ou documentos nas quais se baseia o seguinte entendimento do Júri de Ética: «Entende o Júri que a produção leiteira em modo biológico está vinculada ao pasto, a uma alimentação à base de forragens e a uma menor aplicação de fertilizantes, bem como ao uso de raças dissemelhantes. A maioria das diferenças entre o leite biológico e o convencional são determinadas por características alimentares, bem como pelas raças exploradas, e não pela “denominação” do sistema”», e quer se considere existir aqui falta absoluta de motivação, geradora de nulidade da decisão, quer se considere existir motivação meramente deficiente, geradora de anulabilidade, não se poderá deixar de concluir que a douta decisão recorrida deve ser consequentemente revogada.
h) Tendo a douta decisão recorrida considerado verídico que a campanha intitulada “Programa Leite de Vacas Felizes – Puro Leite de Pastagem” “visa criar a ideia de que se trata de um produto distinto”, e ainda que: (2.2.i) “Hoje a marca Terra Nostra criou um novo segmento de mercado: o Leite de Pastagem” (…) (2.2.ii) “Terra Nostra lança o primeiro leite de pastagem…” (…) (2.2.vii) “Do Programa Leite de Vacas Felizes nasce o Primeiro Leite de Pastagem” (…) (2.2.ix) Chegou o primeiro leite de pastagem magro Terra Nostra”, a conclusão lógica a retirar desses mesmos factos seria a de que a força e a insistência dessa campanha servem esse propósito: o de promover a diferenciação do Leite de Pastagem Terra enquanto produto distinto e diferenciado.
i) Tendo a douta decisão recorrida considerado, ao invés, que o resultado da campanha teria sido o de criar a convicção “de que nela se comunica um leite biológico”, isto é um produto não distinto, conclui-se que os fundamentos de facto invocados na decisão haveriam de conduzir logicamente não ao resultado nela expresso, mas a resultado oposto – considerando-se que a campanha “Programa Leite de Vacas Felizes – Puro Leite de Pastagem” é esclarecedora e não enganosa –, ocorre nulidade, por contradição entre os fundamentos e a decisão, ou, pelo menos, erro de julgamento. Sem prescindir,
j) A p. 30 da douta decisão recorrida consta que: “… entende o Júri que a produção leiteira em modo biológico está vinculada ao pasto, a uma alimentação à base de forragens e a uma menor aplicação de fertilizantes, bem como ao uso de raças dissemelhantes. A maioria das diferenças entre o leite biológico e o convencional são determinadas por características alimentares, bem como pelas raças exploradas, e não pela “denominação” do sistema (…)”.
k) Salvo o devido respeito, este entendimento é inexato, porque assenta em pressupostos de facto que não são verídicos e contrariam diretamente o estatuído no regime legal do leite biológico (i.e. Regulamento (CE) n.º 834/2007 do Conselho, de 28 de Junho de 2007, e Regulamento (CE) n.º 889/2008, da Comissão, de 5 de Setembro de 2008, pelo que se impõe – por esta via também – revogar esse “entendimento”, já que o conceito de “leite biológico”, ao contrário do conceito de “leite de pastagem”, não é uma denominação corrente ou meramente descritiva, mas uma «denominação legal», na aceção do artigo 2.º (definições) do Regulamento (UE) n.º 1169/2011, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011.
l) Com efeito, é o leite biológico (eventualmente quem o produz, comercializa e anuncia) que persuade os destinatários que este produto está necessariamente “vinculado ao pasto” e que o gado é alimentado à base de pastagem ou que são necessariamente usadas raças dissemelhantes, quando tal não é verdade, porque estas perceções simplesmente não correspondem aos requisitos legais estabelecidos para a produção e comercialização desse produto.
m) Nestas circunstâncias, esta não é, em bom rigor, uma questão de publicidade enganosa relativa ao leite de pastagem, mas de desinformação quanto ao conceito de “leite biológico” e aos “valores” que o mesmo supostamente incorporaria, pelo que a campanha publicitária da Recorrente que visa “criar a ideia de que se trata de um produto distinto” contribui sim para o esclarecimento do destinatário, sendo comunicação comercial de interesse público, e deve ser por isso particularmente defendida. Sem prescindir,
n) Salvo melhor opinião, e porque o regime nacional relativo à publicidade enganosa tem, origem comunitária, para qualificar uma mensagem publicitária como enganosa, relevam (i) o seu carácter enganador, (ii) a sua aptidão para induzir ou ser susceptível de induzir em erro os consumidores e (iii) a sua influência de forma significativa no comportamento económico destes.
o) Sucede que a douta decisão recorrida não indica qualquer referência a algum tipo de “influência significativa no comportamento económico dos destinatários”, um dos requisitos exigidos pela jurisprudência comunitária, conforme jurisprudência do Acórdão do Tribunal de Justiça de 16 de Janeiro de 1992, proferido no âmbito do Processo C-373/90, no caso «Nissan», in Coletânea (1992), pp. 1 a 146.
p) Quais seriam, em todo o caso, as provas existentes nos autos que permitiriam concluir pela verificação – nos suportes imprensa e internet – de “uma prática de publicidade enganosa”? Salvo o devido respeito, não só essas provas inexistem, como as que existem no processo – idóneas e devidamente carreadas pela BEL PORTUGAL – provam exatamente o contrário, designadamente os estudos de mercado juntos com a contestação (documentos 37 e 38 da contestação), os quais são quantitativa e qualitativamente suficientes e esclarecedores.
q) Salvo sempre a maior consideração e o respeito pelo Júri de Ética, resulta ainda da restante prova carreada para os autos que o Leite de Pastagem Terra Nostra concorre exclusivamente com os restantes leites UHT, não tendo a respectiva publicidade qualquer carácter enganador, porque não tem aptidão para induzir ou ser susceptível de induzir em erro os consumidores, muito menos para ser “susceptível de levar um número significativo de consumidores a renunciar à sua decisão de compra”. Sem prescindir,
r) Comprovando o anunciante a veracidade das suas alegações publicitárias, é ao destinatário (ao concorrente, à autoridade de fiscalização competente, etc.) que incumbe o ónus de demonstração que a alegação do anunciante, não obstante ter sido comprovada como verídica, é enganosa e influencia na decisão de compra de um número significativo de consumidores – artigo 342º do Código Civil. Sem conceder,
s) Sendo comummente aceite que não vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da inversão automática do ónus de prova nos casos de comprovação de factos negativos (art.º 344º do CC), é igualmente também aceite que “a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade [art.º 20 da CRP], uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur»” (Cfr. por todos Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Processo: 0327/08, de 17-12-2008, in www.dgsi.pt)
t) Neste contexto, atendendo ao teor e alcance das diversas provas juntas – incluindo designadamente os estudos realizados pela Recorrente, os dados da evolução da procura de leite biológico, o preço enquanto fator diferenciador, entre outros, são elementos de prova suficientes para comprovar que as diversas alegações publicitárias realizadas não são susceptíveis de causar engano, muito menos influenciar de forma significativa o comportamento económico dos consumidores.
u) É patente que o pretendido pela LACTOGAL com a queixa – inteiramente desprovida de fundamento – é a manutenção da sua posição dominante no mercado do leite, dificultando a entrada efetiva no mercado do Leite de Pastagem Terra Nostra, com grave prejuízo, não só para a ora Recorrente, mas também para os produtores leiteiros açorianos, os consumidores, a sustentabilidade e o bem-estar social.
v) Sendo um dos objetivos primeiros do direito da publicidade a proteção do princípio da concorrência, a verdade é que – muito embora a Recorrente saiba que não foi essa a intenção subjacente à douta decisão recorrida – constituiria um temerário entrave à liberdade de iniciativa privada e à livre concorrência, promover o encerramento do mercado nacional do leite, bifurcando o tipo de Leite UHT em apenas “dois subtipos legais” viáveis: o leite UHT biológico e leite UHT normal, criando para o UHT leite biológico uma coutada (comunicacional e de acesso ao mercado) sobre tudo quanto incluísse informação pública relativa “…às práticas agrícolas usadas, conjugada com as expressões referentes a critérios de cultivo sustentáveis, juntamente com a ideia de bem-estar dos animais e de proteção dos recursos naturais referindo-se a esse leite como distinto do restante e denominando-o de “Leite de Pastagem”. Em qualquer caso, sem conceder,
w) Quanto às alegações publicitárias concretamente declaradas enganadoras ou mesmo inverídicas, deverá concluir-se salvo melhor opinião que tais alegações (“sem stress”, “melhor leite” / “o melhor leite” e “O Leite de Pastagem é um leite sem igual. Puro e rico em nutrientes”) consistem em vulgares e inócuos exageros publicitários, não provocam efeitos enganosos no convencimento do consumidor, devendo por isso a decisão condenatória ser revogada em conformidade.
NESTES TERMOS, e nos demais de Direito, sempre com o douto suprimento de Vexas, Ilustres Membros da Comissão de Apelo do ICAP, deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente, revogando-se a douta decisão recorrida nos termos peticionados e, em consequência, declarar-se improcedente a queixa apresentada pela LACTOGAL, assim se fazendo Justiça!
4. A recorrida Lactogal contra-alegou, dizendo, em síntese:
A BEL PORTUGAL veio juntar 4 novos documentos, com vista a tentar fazer prova de factos através dos mesmos, não demonstrando, contudo, que estes não puderam ser previamente apresentados perante a Secção do JEP, violando, dessa forma, o disposto no artigo 15.º, n.º 5 do Regulamento do JE.
Não merece, também, acolhimento por parte da Comissão de Apelo a exceção invocada pela BEL PORTUGAL com o argumento de a decisão ser violadora da liberdade de iniciativa privada.
A deliberação do JE não enferma de nenhum dos vícios apontados pela recorrente.
Além da denominação “Leite de Pastagem” ser, por si só, suscetível de conduzir o consumidor médio à conclusão de que se trata de um “Leite Biológico”, acresce que os apelos a métodos de cultivo sustentáveis, a vacas que se alimentam 365 dias de pasto ao ar livre, bem como o recurso a outras mensagens congéneres por parte da BEL PORTUGAL na sua comunicação publicitária e na rotulagem do produto alimentar em causa, transmitindo a ideia que o “leite de pastagem” se posiciona no mercado como Leite Biológico, é susceptível de induzir em erro o consumidor médio, logo configura prática comercial desleal sob a forma de acção enganosa (cf. art. 4º, 6º e 7º, nº 1 al. a) do DL 57/2008).
Relativamente à questão levantada quanto ao ónus da prova, a BEL PORTUGAL não logrou demonstrar a imposição da inversão do que tem sido o entendimento reiteradamente sufragado em deliberações do Júri de Ética e da Comissão de Apelo.
Já quanto à impugnação por parte da BEL PORTUGAL da proibição do uso do claim “sem stress”, alegando que se trata meramente de uma fábula, ficou demonstrado que essa expressão assume importância no contexto das condições de bem estar para o animal, por força da Portaria nº 42/2015, de 19 de fevereiro e ainda do Guia de Boas Práticas na pecuária de leite, publicado pela FAO e FIL/IDF, pelo que a sua utilização deve obedecer aos ditames por si impostos, algo que a BEL PORTUGAL não logrou provar.
Quanto à expressão “melhor leite”, o recurso a esta alegação de superioridade é censurável, como foi já reconhecido, quer pelo Júri de Ética, quer pela Comissão de Apelo, na deliberação proferida no Processo n.º 3J/2014.
A alegação “O leite de pastagem é um leite sem igual. Puro e rico em nutrientes”, no contexto da campanha em causa, assume uma proporção enganadora, que visa, precisamente, criar a perceção no consumidor que se trata de um produto absolutamente distinto.
Termina, pedindo que seja negado provimento ao recurso.
Juntou um documento.
II- FUNDAMENTAÇÃO
5. Os factos
5.1. Com relevo para a decisão do recurso, a deliberação do JE considerou que a requerida logrou provar a veracidade das seguintes alegações publicitárias:
– (2.3.i) “Os objetivos da BEL passam por (…) fazer o bem para os nossos animais, para o ecossistema, para os Açores e para todos nós” (…) “que no final tenha a garantia de um leite distinto…”, – Ana Cláudia Sá, Diretora Geral da BEL PORTUGAL ao Correio da manhã, a 02.02.2015” (Cfr. Doc. 2 da queixa), no sentido em que, como alega a Requerida, é um facto público e notório que todos os leites são distintos;- (2.3.ii) “Esta é uma grande aposta da marca Terra Nostra. O Leite de Pastagem, disponível nas variedades meio-gordo e magro, é sobre fazer o bem: para os Açores, para os produtores, animais e para todos nós” – Paula Gomes, diretora de Marketing da BEL PORTUGAL, à revista Markeeter, a 30.05.2016, (Cfr. Doc. 3 da queixa);- (2.3.iii) “Terra Nostra tem como missão fazer o Bem, bem feito, agindo como um dos principais embaixadores da sua origem, os Açores. Terra Nostra é uma marca líder no mercado de queijo, com mais de 60 anos de história. O lançamento do Leite de Pastagem, exclusivo de produtores certificados do Programa Leite de Vacas Felizes, traz ao mercado um leite puro e rico em nutrientes, com as melhores práticas para uma produção sustentável. O Leite de Pastagem representa o progresso do regresso às origens” Ana Cláudia Sá, Diretora Geral da BEL PORTUGAL à Gazeta rural, a 21/05/2016. (Cfr. Doc. 4 da queixa);- (2.3.iv) “O Leite de Pastagem Terra Nostra é sobre fazer o Bem: para os Açores, para os nossos produtores e para o bem-estar dos nossos animais. É um leite que vem responder à crescente procura de produtos mais naturais e saudáveis, assegurando a pastagem 365 dias por ano” – Paula Gomes, Diretora de Marketing da BEL PORTUGAL, à Gazeta Rural, a 21/05/2016. (Cfr. Doc. 4 da queixa);- (2.3.v) “…um leite puro e rico, de vacas felizes que vivem ao ar livre e comem erva fresca 365 dias por ano”, em Revista do Jornal “O Expresso”, de 1/7/2016. (Cf., Doc. 5 da queixa);- (2.3.vi) “Porquê escolher o Leite de Pastagem Terra Nostra? Razões não faltam. A sua qualidade é rigorosamente testada, a produção é ambientalmente sustentável e o bem-estar animal é uma preocupação constante”, em “Observador”, de 14/6/2016 (Cfr. Doc. 6 da queixa);- (2.3.vii) “Este Programa assenta em cinco pilares fundamentais: a pastagem, o bem-estar animal, a qualidade e segurança alimentar, a sustentabilidade e a eficiência”, em “Observador”, de 14/6/2016. (Cfr. Doc. 6 da queixa);- (2.3.ix) “Com a adoção de práticas mais eficientes e sustentáveis, pretende-se preservar recursos naturais únicos no mundo”, em “Observador” de 14/6/2016. (Cfr. Doc. 6 da queixa);- (2.3.x) “Através do Programa Leite de Vacas Felizes, implementado nos Açores, a Bel fez do bem-estar animal uma parte integrante dos seus objetivos de sustentabilidade e melhorou a vida de milhares de vacas que produzem leite para a marca Terra Nostra”, em Revista Grande Consumo on-line, de 16.8.2016. (Cfr. Doc. 7 da queixa);- (2.3.xi) “Com Terra Nostra e o Programa Leite de Vacas Felizes, a Bel Portugal está também a dar aos consumidores a opção de escolherem níveis de bem-estar mais elevados”, em Revista Grande Consumo on-line, de 16.8.2016. (Cfr. Doc. 7 da queixa);- (2.3.xii) “Terra Nostra representa a terra das vacas felizes, a terra do Puro Leite de Pastagem”, em sítio oficial da marca da Requerida. (Cfr. Doc. 5 da queixa);- (2.3.xiii) “A pastagem é uma fonte viva de nutrientes, é um método de alimentação natural e mais sustentável”, em sítio oficial da marca da Requerida. (Cfr. Doc. 5 da queixa);- (2.3.xiv) “A pastagem é a garantia de um leite mais puro, saudável e saboroso”, em sítio oficial da marca da Requerida. (Cfr. Doc. 5 da queixa);- (2.3.xv) “Não vivem em estábulos, nem são alimentadas à base de rações como na maioria das explorações com regimes intensivos”, em sítio oficial da marca da Requerida. (Cfr. Doc. 5 da queixa);- (2.3.xvi) “O resultado é um leite puro e rico”, em sítio oficial da marca da Requerida. (Cfr. Doc. 5 da queixa);- (2.3.xvii) “Um leite único, puro e rico, de vacas felizes que vivem ao ar livre e comem erva fresca 365 dias por ano. Um leite que faz bem e faz o Bem”, em sítio oficial da marca da Requerida. (Cfr. Doc. 5 da queixa), no sentido em que todos os leites fazem bem;- (2.3.xviii) “Tão saboroso, puro e rico, tinha de vir de vacas felizes que vivem ao ar livre e comem erva fresca 365 dias por ano”, em spot publicitário “Anúncio Leite de Pastagem Terra Nostra, versos ilustrados com imagens alegóricas, ao jeito de video-clip, nos suportes internet e televisão. (Cfr. Doc. 9 da queixa);- (2.3.xix) “Este programa garante a pastagem 365 dias por ano e os mais rigorosos critérios de qualidade, sustentabilidade e bem-estar animal”, em suporte embalagem. (Cfr. Doc. 1 da queixa);- (2.3.xx) “Leite de Pastagem de vacas felizes que vivem ao ar livre e comem erva fresca 365 dias por ano. Um leite que faz bem e faz o bem”, em suporte embalagem. (Cfr. Doc. 1 da queixa);- (2.3.xxi) “As nossas vacas disfrutam de uma alimentação natural e saudável, à base de erva fresca”, em suporte embalagem. (Cfr. Doc. 1 da queixa); – (2.3.xxii) “Leite de Pastagem Terra Nostra é um leite sem igual”, em suporte embalagem. (Cfr. Doc. 1 da queixa), no sentido de que são todos diferentes.
E ainda que:
– (2.2.i) “Hoje a marca Terra Nostra criou um novo segmento de mercado: o Leite de Pastagem”, – Ana Cláudia Sá, Diretora Geral da BEL PORTUGAL ao Correio da manhã, de 02.02.2015. (Cfr. Doc. 2 da queixa);- (2.2.ii) “Terra Nostra lança o primeiro leite de pastagem…”, em Revista do Jornal “O Expresso”, de 1/7/2016. (Cf., Doc. 5 da queixa);- (2.2.iii) “Um leite exclusivo de produtores certificados do Programa Leite de Vacas Felizes”, em Revista do Jornal “O Expresso”, de 1/7/2016. (Cf., Doc. 5 da queixa);- (2.2.vii) “Do Programa Leite de Vacas Felizes nasce o Primeiro Leite de Pastagem”, em sítio oficial da marca da Requerida. (Cfr. Doc. 5 da queixa);- (2.2.ix) “Chegou o primeiro leite de pastagem magro Terra Nostra”, em spot publicitário “Anúncio Leite de Pastagem Terra Nostra, versos ilustrados com imagens alegóricas, ao jeito de video-clip, nos suportes internet e televisão. (Cfr. Doc. 9 da queixa);- (2.2.xi) “O Leite de Pastagem é um exclusivo de produtores do Programa Leite de Vacas Felizes”. (Cfr. Doc. 1 da queixa).
5.2. A requerida não logrou provar a veracidade das seguintes alegações publicitárias:
– (2.3.viii) “As vacas do Programa Leite de Vacas Felizes vivem ao ar livre, sem stress, e não fechadas em estábulos a comer ração, conforme acontece na maior parte das explorações com regimes intensivos, quer em Portugal Continental, quer noutros países europeus. É caso para dizer: Há vacas com muita sorte!”, em “Observador de 14/6/2016. (Cfr. Doc. 6 da queixa), quanto ao fator “sem stress”.- (2.2.iv) “Leite de pastagem Terra Nostra porque vacas-felizes agradecem com melhor leite”, em “Observador” on-line, de 14/6/2016. (Cfr. Doc. 6 da queixa);- (2.2.v) “Todo o leite é bom, o Terra Nostra é melhor”, em Revista Grande Consumo on-line, de 16.8.2016. (Cfr. Doc. 7 da queixa);- (2.2.vi) “O melhor leite precisa de práticas agrícolas sustentáveis e de elevados critérios de qualidade. O melhor leite vem da pastagem de vacas felizes, que vivem ao ar livre e comem erva fresca o ano inteiro”, em sítio oficial da marca da Requerida. (Cfr. Doc. 5 da queixa);- (2.2.viii) “O Leite de Pastagem é um leite sem igual puro e rico em nutrientes”, em sítio oficial da marca da Requerida. (Cfr. Doc. 5 da queixa), no sentido em que “sem igual” se refere, especificamente, a nutrientes e pureza, não sendo a expressão, aqui, uma mera hipérbole publicitária.
6. Cumpre apreciar e decidir.
7. Da oportunidade da junção de documentos com as alegações e contra alegações
7.1. Com as suas alegações de recurso, a Fromageries Bel veio juntar quatro documentos, visando comprovar o significado do termo “pastagem”, o significado corrente atribuído à menção “sem stress”, em variados contextos, e a utilização pela Lactogal, em campanhas publicitárias, por si promovidas, de alegações publicitárias semelhantes às aqui em causa.
Sucede que, nos termos do disposto nos arts. 10º, nº2 e 11º, nº3, do Regulamento do JE do ICAP, as provas devem ser apresentadas com a petição e a contestação.
Na fase do recurso, apenas se consente a junção de novas provas, «se comprovadamente não puderam ter sido apresentadas perante a Secção» (art. 15º, nº 5).
Das referidas disposições resulta, pois, que só é admissível a apresentação de documentos, na fase de recurso, se se destinarem a provar factos cuja relevância surja apenas com a decisão proferida, mas não para provar factos que já antes dessa decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova.
Na situação em apreço, a junção dos documentos em questão é de considerar extemporânea, desde logo por a sua apresentação, nesta fase, não se poder justificar, pelos termos da deliberação proferida pelo JE.
7.2. Com as contra alegações, a recorrida veio juntar também um documento. Trata-se de uma mera cópia de documentos já oportunamente juntos ao processo pela recorrente.
Sendo assim, é por demais evidente não haver qualquer justificação para serem, de novo, apresentados, nesta fase, pela recorrida.
8. Da nulidade da deliberação recorrida
A recorrente arguiu a nulidade da decisão do JE, sustentando que:
i) a decisão foi além do pedido formulado;ii) se verifica omissão dos fundamentos de facto, e iii) contradição entre a decisão e os fundamentosVejamos.
A recorrente entende que a decisão recorrida ordenou o expurgo de alegações publicitárias (“sem stress”, “Leite de pastagem Terra Nostra porque vacas felizes agradecem o melhor leite”, “Todo o leite é bom, o Terra Nostra é melhor”, e “O melhor leite precisa de práticas agrícolas sustentáveis e de elevados critérios de qualidade”) que, por não constarem do pedido formulado pela LACTOGAL, consubstanciam condenação em objeto diverso do pedido.
Não será, contudo, assim.
Em primeiro lugar, há que ter presente que, em conformidade com as regras gerais da interpretação da declaração negocial, o pedido formulado deve ser interpretado tendo em conta os fundamentos invocados.
Por outro lado, a recorrente está a esquecer que a denunciante, dando, aliás, cumprimento ao disposto no art.º. 10º, do Regulamento do JE, incluiu tais alegações no elenco das que pretendia ver apreciadas pelo JE (cf. art.º. 13º , da queixa).
Desta forma, todos os elementos indicados deveriam ser, como foram, analisados pelo Júri de Ética, a fim de, com base no que for apurado, proferir decisão final.
Quanto à condenação ultra petitum, em razão das considerações expendidas sobre a prova documental junta com a contestação (cf. pág. 28), não se vislumbra fundamento para o invocado vício, sendo certo que a recorrente se limita a imputar o referido vício à deliberação, sem lograr justificar a sua razão de ser.
Resta, finalmente, acrescentar que as nulidades de sentença, previstas no art.º. 615º, do CPC têm o seu campo de aplicação restrito ao processo civil, onde encontram a sua razão de ser, não se justificando a sua aplicação em processos, como o dos autos, cuja matriz se afasta muito claramente da do processo civil.
Relativamente à nulidade/anulabilidade da deliberação, por alegada omissão dos fundamentos de facto:
Sem prejuízo de se considerar que não é aqui aplicável o regime das nulidades de sentença, previstas na lei processual civil, a verdade é que a deliberação do JE não padece do vício apontado, pois que se mostra devida e adequadamente fundamentada, com análise dos meios probatórios que serviram de base à decisão de facto, além da indicação dos fundamentos ético-legais que, em seu entender, justificam a decisão.
Relativamente à nulidade da deliberação, por alegada contradição entre a decisão e a fundamentação de facto:
Mais uma vez, não assiste razão à recorrente.
Como efeito, não se verifica qualquer contradição lógica, entre a fundamentação e a decisão, pelo facto de se ter dado como provado que a ora recorrente logrou provar a veracidade de determinadas alegações publicitárias (“Hoje a marca Tera Nostra criou um novo segmento de mercado: o leite de Pastagem”; “Terra Nostra lança o primeiro leite de pastagem”; Do Programa Leite de Vacas felizes nasce o Primeiro leite de pastagem”; “Chegou o primeiro leite de pastagem magro Terra Nostra”) e se ter entendido, com base em vários outros pressupostos de facto, para além dos apontados, que a comunicação em causa é susceptível de criar no consumidor a ideia de que se trata de leite biológico.
Nenhum dos alegados vícios pode, assim, ser assacado à deliberação recorrida.
9. Enquadramento ético-legal
Atendendo ao teor das conclusões das alegações da recorrente, a primeira questão a decidir consiste em saber se a comunicação comercial divulgada, por via das referências feitas a práticas agrícolas usadas, conjugada com as expressões alusivas a critérios de cultivo sustentáveis, juntamente com a ideia de bem estar dos animais e da proteção dos recursos naturais, referindo-se a esse leite, como distinto do restante e denominando-o de “leite de pastagem”, consubstancia uma acção publicitária enganosa, quanto às características do leite “TERRA NOSTRA”.
Na decisão recorrida começou por se afirmar, e bem, que impendia sobre a requerida o ónus da prova de que o consumidor médio, razoavelmente atento e informado, colocado perante a campanha publicitária da sua responsabilidade, não a perceciona como publicidade a «leite biológico» (v. pág. 29).
E, muito embora admitindo não se fazer menção à técnica de cultivo biológica, considerou-se que a referência feita a técnicas agrícolas sustentáveis, juntamente com a ideia de bem estar dos animais e da proteção dos recursos naturais, referindo-se a esse leite, como distinto do restante e denominando-o de “leite de pastagem, é susceptível de criar no consumidor a ideia de que se trata de leite biológico. Mais se entendeu que “a produção leiteira em modo biológico está vinculada ao pasto, a uma alimentação á base de forragens e a uma menor aplicação de fertilizantes, bem como ao uso de raças dissemelhantes.”
Concluiu-se, então, que a comunicação comercial em causa é de qualificar como uma prática de publicidade enganosa, por desconformidade com o disposto nos arts. 9º, nºs 1 e 2, al. a) e 12º, do CC-ICAP e com o consignado no nº1, al. b), do art.º. 7º, do DL nº 57/2008, de 26 de Março.
Vejamos.
São princípios fundamentais da comunicação comercial, nos termos do Código de Conduta do ICAP (CC-ICAP), que tais comunicações “devem ser “honestas e verdadeiras” (art.º 4º nº 1), “devem ser conformes aos princípios da leal concorrência, tal como estes são comummente aceites em assuntos de âmbito comercial” (art.º 4º nº 2) e “não devem minar a confiança do público” (art.º 4º nº 3).
Estabelece-se ainda no CC-ICAP que a comunicação comercial “deve ser verdadeira e não enganosa” (art.º 9º nº 1) e “deve proscrever qualquer declaração (…) que seja de natureza a, direta ou indiretamente, mediante omissões, ambiguidades ou exageros, induzir, ou ser susceptível de induzir em erro o consumidor, designadamente no que respeita a:
a) características essenciais do produto, ou que sejam determinantes para influenciar a escolha do consumidor, como por exemplo: a natureza, a composição, o método e data de fabrico, …” (art.º 9º nº 2 al. a);h) efeitos na saúde do consumidor (art.º 9º nº 2 al (h)).
Por sua vez, a comunicação comercial “deve ser concebida de forma a não abusar da confiança dos consumidores” (art.º 7º nº 1).
Estes princípios e deveres estão também afirmados no DL 57/2008 de 26.03 (regime aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço) nomeadamente quando aí se considera “enganosa a prática comercial que contenha informações … que, mesmo sendo factualmente corretas, por qualquer razão, nomeadamente a sua apresentação geral, induza ou seja susceptível de induzir em erro o consumidor”, em relação às “características principais do bem” tais como “a sua composição”, conduzindo, ou sendo susceptível “de conduzir, o consumidor a tomar uma decisão de transação que este não teria tomado de outro modo” (art.º 7º nº 1 al. b)).
De igual modo, o Código da Publicidade (CP), aprovado pelo DL 330/90 de 23.10, consagra o princípio da veracidade (art.º. 10º), nos termos do qual a publicidade deve respeitar a verdade, não deformando os factos (nº1); as afirmações relativas à origem, natureza, composição, propriedades e condições de aquisição dos bens ou serviços publicitados devem ser exatas e passíveis de prova, a todo o momento, perante as instâncias competentes (nº2).
Estabelece-se ainda a proibição de “toda a publicidade que seja enganosa nos termos do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março” (art.º 11º, nº1).
Além disso, faz recair sobre o anunciante o ónus da apresentação de provas da exatidão material dos dados de facto contidos na publicidade (nº2), presumindo-se inexatos se as provas exigidas não forem apresentadas ou forem insuficientes (nº3).
Em consonância com esta regra de direito probatório está também o preceituado nos artigos 4.º, 5.º e 12.º do Código de Conduta do ICAP (CC-ICAP).
Feito este breve enquadramento normativo, e retornando ao caso em apreciação, afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que a comunicação comercial em causa, percecionada por intuição sintética, e não por dissecação analítica, não constitui uma prática de publicidade enganosa.
Isto porque:
A certificação do chamado «leite biológico» está sujeita a critérios muito apertados, em todas as fases da produção, preparação e distribuição, incluindo as operações de transporte, acondicionamento, rotulagem e armazenamento deste alimento, que estão muito para além da seleção de raças e do tipo de dieta.
As alegações publicitárias constantes da campanha, veiculadas nos suportes imprensa e internet, não fazem qualquer menção a produto biológico ou «bio», a métodos de produção biológica ou a quaisquer outras indicações exigidas pelo regime legal em vigor, para a certificação de um produto como «biológico».
O mesmo se passa com as informações inseridas na embalagem.
Desta forma, no contexto factual apurado, afigura-se-nos que as referências a «técnicas agrícolas sustentáveis», ao bem estar dos animais e à proteção dos recursos naturais, só por si, não são susceptíveis de gerar a convicção junto do consumidor médio de que se trata de publicidade a leite biológico.
A este respeito, cabe, aliás, salientar que o consumidor “tipo” de produtos biológicos tem, em regra, um nível cultural superior à média, associado, por sua vez, a uma (muito) maior capacidade de identificar as características do bem alimentar que tem em vista adquirir e de distinguir o que é, ou não é, um produto biológico.
Nestas circunstâncias, analisando a comunicação comercial em causa, no seu conjunto, somos levados a concluir que não tem aptidão para induzir, ou ser susceptível de induzir, em erro o público consumidor, normalmente informado, atento e advertido, sobre as características essenciais do “leite de pastagem Terra Nostra”, nem a determinar e/ou influenciar a escolha do produto, considerando-o como leite biológico, quando, na verdade, é leite UHT.
XXX
Nas alegações de recurso, a recorrente alega que “o pretendido pela Lactogal com o presente processo (…) é, pois, a manutenção da sua posição dominante, dificultando a entrada efetiva no mercado de um novo produto, com grave prejuízo, não só para a ora recorrente, mas também para os consumidores e par ao bem estar social (…).”
Veio, afinal, suscitar a questão da violação dos princípios da iniciativa privada e da livre concorrência, protegidos pela CRP, nos seus artigos 61, nº 1 e 81º, al. f), bem como pelo Tratado de Funcionamento da União Europeia, nos arts. 101º e ss. e 119º, nº1.
Trata-se, contudo, de uma «questão nova», de que não cabe conhecer nesta instância de recurso, uma vez que os recursos não se destinam a suscitar e a obter decisões sobre questões que não tenham sido colocadas perante a entidade recorrida, mas apenas ao reexame das decisões proferidas sobre as questões suscitadas ab initio pelo recorrente.
XXX
Quanto às alegações publicitárias “sem stress”, “melhor leite”, “o melhor leite” e “O Leite de Pastagem é um leite sem igual. Puro e rico em nutrientes”, a recorrente pretende que «consistem em vulgares e inócuos exageros publicitários, não provocam efeitos enganosos no convencimento do consumidor, devendo, por isso, a decisão condenatória ser revogada em conformidade.”
Não sufragamos, porém, o seu entendimento.
Efetivamente, no caso que analisamos, a expressão “sem stress” não é percecionada com o significado corrente ou vulgar, mas com o sentido que normalmente lhe é atribuído no âmbito do exercício da atividade pecuária.
Da mesma forma, não se tratando de meras hipérboles publicitárias, e na ausência de comprovação da sua veracidade, é de rejeitar a pretensão da recorrente, quanto às alegações “melhor leite”, “o melhor leite” e “O Leite de Pastagem é um leite sem igual. Puro e rico em nutrientes” .
10. Decisão
Em face do exposto, deliberam os membros da Comissão de Apelo em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela FROMAGERIES BEL PORTUGAL SA, e, em consequência, determinam a reposição da comunicação comercial, veiculada nos suportes imprensa, internet (com exceção do you tube) e embalagem, no tocante às alegações publicitárias, cuja veracidade a requerida logrou provar.».
Lisboa, 7 de Outubro de 2016
Maria do Rosário Morgado
Presidente da Comissão Apelo
Augusto Ferreira do Amaral
Vice-Presidente Comissão Apelo